A linguagem poética se destaca, desde suas origens, por sua densidade simbólica e ambiguidade semântica. Entre os elementos centrais dessa expressividade está a polissemia — a capacidade de uma palavra ou estrutura de gerar múltiplos significados. Este artigo tem por objetivo analisar a função da polissemia na poesia, não como um entrave comunicacional, mas como uma força criativa e transgressora que expande as fronteiras do dizer.
Em sua clássica reflexão sobre a linguagem poética, Roman Jakobson (1973) afirma que a poesia se caracteriza pela ênfase na função poética da linguagem, isto é, por um uso que desloca o foco da mensagem para a própria materialidade do signo. Nesse processo, a ambiguidade torna-se um recurso estético. A polissemia, longe de ser evitada, é cultivada e intensificada como forma de gerar tensão, surpresa e pluralidade de sentidos.
A polissemia é o que permite, por exemplo, que versos curtos e aparentemente simples revelem camadas profundas de significação. Um único verso pode remeter simultaneamente ao amor e à morte, à infância e à velhice, à dor e ao prazer. Como aponta Octavio Paz (1982), a poesia “abre” a linguagem cotidiana, libertando-a das amarras da univocidade lógica e permitindo que o signo se revele em sua totalidade.
Nas obras de poetas simbolistas como Cruz e Sousa, ou de modernos como Carlos Drummond de Andrade, observa-se um jogo constante com a ambiguidade lexical, sintática e semântica. Em Drummond, por exemplo, a polissemia de palavras como “pedra” em “No meio do caminho” permite diversas interpretações: obstáculo físico, dificuldade existencial, metáfora da permanência ou da repetição. O poema não se encerra em um único sentido — ele se multiplica a cada leitura.
A linguagem poética, nesse sentido, recusa a lógica da comunicação funcional. Ela não busca a clareza imediata, mas a evocação de afetos, a perturbação dos sentidos, a abertura para o indizível. Ao suspender a transparência referencial, a poesia cria um espaço em que o leitor não consome o conteúdo de forma passiva, mas participa da construção de significados. É a polissemia que ativa essa coautoria do leitor.
Por outro lado, a polissemia também pode ser entendida como gesto ético e político. Ao não fixar sentidos, a linguagem poética resiste à rigidez do discurso autoritário, técnico ou ideológico. Ao contrário da linguagem que pretende controlar o real, a poesia deixa as portas abertas para o outro, para o imprevisto, para a diferença. Paul Ricoeur (1988) defende que a metáfora — um dos mecanismos fundamentais da polissemia — instaura novas formas de ver e interpretar o mundo, operando como ato de refiguração da realidade.
Portanto, longe de ser um ruído ou obstáculo, a polissemia é uma das maiores riquezas da linguagem poética. Ela transforma o poema em espaço de jogo, invenção e reinvenção, onde os sentidos dançam, escorregam e se reconfiguram. Na era da velocidade e da simplificação, reconhecer o valor da polissemia é também um ato de resistência à lógica utilitária da linguagem.
Referências bibliográficas:
DRUMMOND DE ANDRADE, Carlos. Antologia poética. Rio de Janeiro: Record, 2000.
JAKOBSON, Roman. Lingüística e comunicação. São Paulo: Cultrix, 1973.
PAZ, Octavio. O arco e a lira. São Paulo: Perspectiva, 1982.
RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa. Campinas: Papirus, 1988.
SANTIAGO, Silviano. O cosmopolitismo do pobre. Belo Horizonte: UFMG, 2004.