A linguagem, longe de ser uma ferramenta neutra de comunicação, é um território de disputas simbólicas, ideológicas e afetivas. A pretensão de neutralidade no discurso — durante muito tempo sustentada por instituições científicas, jurídicas e jornalísticas — vem sendo desconstruída por movimentos sociais, estudiosos da linguagem e pela própria dinâmica da cultura digital. No mundo contemporâneo, toda enunciação carrega, implicitamente, uma posição política.
Essa politização da linguagem não se dá apenas pelo uso explícito de termos ligados à militância. Ela está presente na escolha das palavras, na seleção de vozes autorizadas a falar, na estrutura dos enunciados e nos silêncios impostos pelo discurso dominante. Como apontam Michel Foucault e Pierre Bourdieu, toda linguagem é também um exercício de poder: quem pode falar, sobre o quê, e com que autoridade?
A dissolução da ideia de neutralidade linguística, especialmente a partir da segunda metade do século XX, marca uma virada importante na forma como compreendemos o papel do discurso. No campo jornalístico, por exemplo, a chamada “objetividade” foi posta em xeque por autores como Chomsky e Herman, que denunciaram a forma como interesses econômicos moldam a narrativa das grandes mídias. Já na linguagem científica, Thomas Kuhn mostrou que o paradigma dominante influencia profundamente os resultados e a própria formulação das perguntas de pesquisa.
No campo da linguística, estudiosos como Norman Fairclough e Teun van Dijk desenvolveram ferramentas de análise do discurso crítico para desvendar os mecanismos de dominação ideológica presentes em textos aparentemente neutros. O discurso midiático, o discurso jurídico e até mesmo o discurso educacional são analisados como arenas em que se travam disputas simbólicas por sentido e hegemonia.
A literatura, por sua vez, atua como um espaço de revelação dessas tensões. Autores como Toni Morrison, Grada Kilomba e Lima Barreto expõem, por meio da ficção, os mecanismos de apagamento, silenciamento e violência simbólica presentes na linguagem cotidiana. O uso de dialetos, neologismos ou desvios da norma culta se transforma, nessas obras, em estratégias de resistência e afirmação identitária.
Com a ampliação das redes sociais, essas disputas discursivas se intensificam e ganham novas formas. O uso de pronomes neutros, a revisão de expressões racistas ou capacitistas, e o surgimento de termos como “lugar de fala” ou “epistemicídio” mostram como a linguagem passou a ser percebida como um campo de afirmação política e ética. A reação a essas transformações, por parte de setores conservadores, reforça o caráter profundamente ideológico da linguagem.
Reconhecer que todo discurso é situado e que toda linguagem carrega uma visão de mundo é, portanto, um passo fundamental para qualquer reflexão crítica. A linguagem não descreve apenas a realidade: ela a constrói. E, como toda construção, pode ser questionada, reformulada, resistida.
Referências bibliográficas:
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011.
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 2008.
FAIRCLOUGH, Norman. Discourse and Social Change. Cambridge: Polity Press, 1992.
VAN DIJK, Teun A. Ideologia e discurso. São Paulo: Contexto, 2010.
KUHN, Thomas. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 2006.
CHOMSKY, Noam; HERMAN, Edward. Manufacturing Consent. New York: Pantheon, 1988.
KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. São Paulo: Cobogó, 2019.