
Do sublime ao espetáculo

em 17 de Julho de 2025
A modernidade impôs ao sujeito novas formas de experiência: a velocidade, o anonimato urbano, a fragmentação dos vínculos sociais e a perda de referências tradicionais. Em meio a esse cenário, emerge uma das marcas mais pungentes da sensibilidade moderna: a solidão. Não se trata apenas da ausência de companhia, mas de uma condição ontológica — um sentimento de separação diante do mundo e de si mesmo. A arte moderna, em suas diversas linguagens, captou e expressou essa condição de maneira singular. A poesia de Charles Baudelaire e Cruz e Souza, e a música de Claude Debussy, oferecem retratos densos dessa solidão interiorizada e estetizada.
Baudelaire, considerado um dos precursores da modernidade literária, apresenta em As flores do mal a figura do flâneur — o homem que vaga pelas ruas da cidade moderna, observando, mas sem pertencer. O flâneur é, ao mesmo tempo, espectador e estrangeiro do mundo que contempla. O sujeito baudelariano é dilacerado entre a aspiração ao sublime e a realidade corrompida da urbe. Em seus poemas, a multidão não elimina a solidão: ao contrário, a intensifica. A cidade é espaço de deslocamento, onde os rostos se tornam efêmeros e os vínculos, impossíveis.
Cruz e Souza, por sua vez, em seus poemas simbolistas, traduz a solidão como um estado de alma trágico e transcendental. Seus versos densos, musicalizados e imagéticos evocam uma melancolia profunda, que nasce do sentimento de deslocamento não apenas social — como homem negro em um país escravocrata — mas também metafísico. O eu lírico de Cruz e Souza é um espírito errante, atormentado por visões e dores que não encontra alívio nem na fé, nem na arte. Sua solidão é, portanto, existencial e espiritual, marcada por uma sensibilidade aguda diante da condição humana.
Na música de Debussy, especialmente em peças como Clair de Lune e La cathédrale engloutie, a solidão se manifesta pela dissolução das estruturas formais tradicionais. As harmonias imprecisas, os silêncios prolongados e as escalas modais criam uma atmosfera etérea, quase onírica. A música impressionista não narra, não explica — ela insinua, envolve, suspende. A ausência de resolução harmônica e a evasão da cadência tradicional colocam o ouvinte diante de um vazio que ressoa com a experiência moderna do desenraizamento. A música de Debussy não busca a comunhão, mas o mergulho interior.
O que une esses três artistas, em suas respectivas linguagens, é a tentativa de expressar o inexpressável: o sentimento de isolamento do sujeito diante do mundo e da própria subjetividade. A solidão moderna, tal como eles a representam, não é um acidente, mas uma estrutura da existência. É por meio dela que se revela a fragilidade do homem moderno, sua busca por sentido e sua recusa em aceitar as explicações fáceis da tradição.
Ao dar forma à solidão, a arte moderna também a transforma. Torna o silêncio eloquente, a dor estética, a distância uma linguagem. Baudelaire, Cruz e Souza e Debussy não apenas falam da solidão — eles a fazem vibrar no ritmo, na imagem e na melodia. E é talvez nesse gesto que se encontra a possibilidade de uma comunhão paradoxal: a de reconhecer-se no isolamento do outro.
BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal. São Paulo: Martin Claret, 2001.
CRUZ E SOUSA. Missal e Broquéis. São Paulo: Martins Fontes, 1993.
DEBUSSY, Claude. Clair de Lune; La cathédrale engloutie. Paris: Durand, 1905.
BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1989.
BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
DANTAS, Vinícius. Cruz e Sousa e o simbolismo trágico. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2005.
PIANO, Renata. A melancolia em Debussy: estética do silêncio e dissolução harmônica. Revista da UNICAMP, 2012.