A linguagem não é apenas um instrumento de comunicação, mas também um elemento central na construção da identidade individual e coletiva. Em comunidades bilíngues, essa relação entre linguagem e identidade ganha contornos ainda mais complexos, pois os sujeitos vivem entre dois (ou mais) códigos linguísticos e culturais que se entrelaçam e se tensionam. Este artigo propõe uma reflexão sobre como a convivência com múltiplas línguas afeta a percepção de pertencimento e a constituição da subjetividade nas comunidades bilíngues.
O bilinguismo pode se manifestar de diferentes formas: pode ser resultado de uma colonização histórica, como no caso do Haiti (francês e crioulo haitiano); de imigração, como ocorre entre hispânicos nos Estados Unidos; ou ainda de políticas educacionais e culturais específicas, como no Canadá (inglês e francês). Cada um desses contextos cria uma configuração distinta de usos e valorações simbólicas das línguas envolvidas.
Segundo Joshua Fishman (1972), o bilinguismo está sempre imerso em dinâmicas de poder. A escolha da língua em determinado contexto carrega implicações sociais, políticas e afetivas. Em muitos casos, uma das línguas é socialmente valorizada e institucionalmente promovida, enquanto a outra é relegada ao espaço doméstico ou comunitário, gerando tensões identitárias profundas nos falantes. Isso pode levar ao que Pierre Bourdieu chama de “esquizofrenia linguística”, em que o sujeito sente que precisa abandonar uma parte de si para se adequar a contextos formais.
Essas tensões também se manifestam no campo simbólico da identidade. Como mostra Stuart Hall, a identidade é construída por meio de narrativas, e a língua é um dos principais meios dessa construção. Em comunidades bilíngues, o indivíduo precisa constantemente negociar quem é em função da língua que está utilizando. Em casa, pode ser o filho ou neto de imigrantes; na escola, o aluno que fala com sotaque; no trabalho, o profissional que precisa “se corrigir” para ser compreendido.
Apesar dos conflitos, o bilinguismo também pode ser uma fonte de resistência e empoderamento. Em muitos contextos, o uso da língua materna se torna um ato político, uma forma de afirmação cultural e de preservação da memória coletiva. Movimentos como o do Quechua no Peru, do Guarani no Paraguai, ou da língua galega na Espanha demonstram que a língua é também um território simbólico de disputa e afirmação.
A escola, nesse cenário, desempenha papel ambivalente. Pode tanto reforçar a dominação simbólica da língua hegemônica quanto promover uma educação plurilíngue e intercultural. Experiências de educação bilíngue têm mostrado que é possível integrar línguas e culturas diversas sem hierarquizá-las, promovendo maior pertencimento e autoestima nos alunos.
Portanto, a linguagem é mais do que uma ferramenta: é o próprio tecido que costura a identidade. Em comunidades bilíngues, o sujeito constrói-se nas fronteiras, na alternância, na pluralidade. Reconhecer essa complexidade é fundamental para pensar políticas linguísticas mais justas, e para acolher a riqueza das vozes que falam entre línguas.
Referências bibliográficas:
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.
FISHMAN, Joshua. Language and Nationalism. Rowley: Newbury House, 1972.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.
CALVET, Louis-Jean. A guerra das línguas e as políticas linguísticas. São Paulo: Parábola, 2007.
SKUTNABB-KANGAS, Tove. Linguistic Genocide in Education or Worldwide Diversity and Human Rights? New York: Routledge, 2000.