
Justiça silenciosa

em 15 de Julho de 2025
Na França do início do século XX, o impressionismo musical de Claude Debussy utilizava o atonalismo como um recurso para expressar aquilo que é obscuro, incerto ou “ímpar”, nas palavras de Charles Baudelaire. Na peça Clair de Lune, por exemplo, o ouvinte é conduzido a uma atmosfera nebulosa, sensível e sugestiva. As quebras de ritmo, a ausência de notas graves em certos momentos e as oscilações entre escalas ascendentes e descendentes produzem a sensação de suspensão, como se o som estivesse “no ar”. Esses recursos não apenas aproximam a música da pintura impressionista como também influenciaram diversas formas de arte pelo mundo — inclusive no Brasil.
Ao atravessar o Atlântico, essa estética se transformou e ganhou significados próprios. Compositores como Villa-Lobos, por exemplo, incorporaram elementos como a poliharmonia e a poliritmia para expressar a pluralidade do Brasil, construindo uma identidade sonora que refletia a mistura de raças e culturas do país. Essa mesma lógica de fragmentação, musicalidade e sensorialidade encontra eco na poesia simbolista e modernista brasileira.
Neste trabalho, propomos uma análise comparada entre dois poemas que manifestam fortemente essa fusão entre palavra e som: Violões que choram, de Cruz e Souza, e Debussy, de Manuel Bandeira. Nosso foco será os aspectos modernos dessas composições poéticas, guiando-nos especialmente pelas reflexões de Baudelaire em O pintor da vida moderna.
No poema de Cruz e Souza, observamos já na primeira estrofe a evocação do violão como símbolo de melancolia e evocação sensorial: “violões dormentes, mornos [...] choros ao vento”. A escolha vocabular transmite uma atmosfera de suspensão e eco, remetendo diretamente à experiência auditiva de ouvir um instrumento de cordas. Ao longo do poema, as imagens de “cordas vivas”, “sons que soluçam” e “mágoas amargas” expandem essa impressão, criando um fluxo lírico que se assemelha a uma peça musical carregada de emoção.
O aspecto sinestésico também é marcante: o eu lírico mistura sensações visuais, auditivas e táteis, transportando o leitor para uma dimensão de sonho, memória e lamento. A aliteração com a letra “v” — “volúpias dos violões, vozes veladas, vagam nos velhos vórtices velozes” — intensifica a musicalidade do texto e simboliza a vibração das cordas. A linguagem de Cruz e Souza se torna um eco do próprio som que descreve, criando uma unidade estética entre forma e conteúdo.
Já o poema Debussy, de Manuel Bandeira, apresenta uma abordagem aparentemente mais simples, mas não menos sofisticada. A repetição de movimentos — “Para cá, para lá...” — e a imagem do novelo oscilando nas mãos de uma criança evocam exatamente os movimentos pendulares de Clair de Lune. Ao associar essa oscilação a um quase adormecer, o poema mergulha em uma atmosfera impressionista, onde o ritmo suave e a fragmentação da forma geram uma sensação de leveza, suspensão e efemeridade.
Bandeira, ao nomear seu poema com o nome do compositor, explicita sua intenção de transpor para a poesia os mesmos efeitos que Debussy produzia com sua música. A estrutura do poema é breve, leve, e carrega um silêncio implícito — um silêncio que dialoga com os trechos mais etéreos da suíte Bergamasque. Tal como Debussy acreditava que a música não precisava fazer pensar, mas sim sentir, Bandeira sugere que a poesia pode funcionar da mesma maneira.
Ambos os poemas, apesar das diferenças formais, compartilham características centrais da estética moderna delineada por Baudelaire. São obras que abandonam o rigor da tradição clássica e se voltam para a subjetividade, para o instante, para o fragmento. Trabalham com o “presente, o efêmero e o transitório”, como escreveu o próprio Baudelaire, e revelam um Brasil que, no início do século XX, também se encontrava imerso em profundas transformações sociais, culturais e urbanas.
Enquanto Cruz e Souza traduz o impacto da modernidade com imagens noturnas e sons lacerantes que ecoam em ruas desertas e lembranças nebulosas, Bandeira escolhe o minimalismo lírico e sonoro para retratar a delicadeza e a impermanência da experiência estética moderna. Ambos os poetas nos mostram, cada um à sua maneira, que a modernidade não é apenas um momento histórico, mas uma sensibilidade — uma forma de ver, de sentir e de criar.
Baudelaire, Charles. O pintor da vida moderna. São Paulo: Autêntica Editora, 2010.
Cruz e Souza. Violões que choram.
Bandeira, Manuel. Debussy.
Debussy, Claude. Clair de Lune, em Suite Bergamasque.
Villa-Lobos, Heitor. Composições para piano e orquestra.