
Justiça silenciosa

em 15 de Julho de 2025
O presente artigo analisa, com base em evidências empíricas e teóricas, a plausibilidade da fluência em múltiplas línguas, especialmente em casos extremos de poliglotismo. A discussão parte de uma posição cética quanto à veracidade das alegações de indivíduos que afirmam falar mais de uma dezena de idiomas fluentemente. Apresentamos cálculos aproximados do tempo necessário para atingir a fluência em uma língua estrangeira, destacando não apenas o processo de aquisição, mas também a exigência de manutenção contínua do conhecimento. Concluímos que, embora a aquisição de múltiplos idiomas seja possível, a alegação de fluência plena em mais de dez línguas simultaneamente demanda uma análise crítica rigorosa.
Nas últimas décadas, o surgimento de figuras públicas que se apresentam como poliglotas — fluentes em dez, quinze, ou até dezoito línguas — gerou fascínio e ao mesmo tempo desconfiança em parte da comunidade acadêmica e do público interessado em linguística aplicada. Este artigo parte de uma posição crítica e cética para refletir sobre os limites reais do aprendizado de múltiplas línguas, considerando fatores como o tempo de exposição necessário, a prática ativa e a manutenção da proficiência ao longo da vida.
A hipótese aqui defendida é simples: mesmo com dedicação extrema, o tempo de vida útil de uma pessoa comum parece ser insuficiente para alcançar e sustentar fluência genuína em dezoito idiomas. A primeira variável a ser considerada é a quantidade de horas necessária para se tornar verdadeiramente fluente em uma língua. Estudos sobre aquisição de segunda língua indicam que esse número varia conforme o idioma, a proximidade linguística com a língua materna, o contexto de aprendizado e o perfil cognitivo do aprendiz. Ainda assim, de modo geral, considera-se um mínimo de 3.000 horas de contato ativo — envolvendo leitura, escuta, fala e escrita — para se atingir um nível de fluência estável e funcional.
Multiplicando esse número por 18 idiomas, teríamos a soma de 54.000 horas de estudo concentrado. Considerando uma rotina de estudo diária de duas horas, esse total só seria alcançado após mais de 70 anos de dedicação ininterrupta. Mesmo com jornadas intensas de 10 a 12 horas por dia, levaria cerca de 12 a 15 anos para completar esse volume de contato com as línguas — um feito notável e, na prática, extremamente raro.
E isso nos leva ao segundo ponto crucial da análise: a manutenção dos idiomas. Diferente de uma habilidade como andar de bicicleta, o domínio ativo de uma língua estrangeira exige constante reforço. Uma vez que o cérebro prioriza informações utilizadas com frequência, línguas que não são praticadas tendem a perder fluidez e precisão. A retomada de estruturas gramaticais, vocabulário específico e fluência de pensamento no idioma exige prática regular, o que significa que o esforço de aprender precisa ser complementado por um esforço equivalente de preservar o aprendizado.
É possível que alguns poliglotas tenham alcançado um nível funcional — e não necessariamente fluente — em muitos idiomas. Isso significa que conseguem se comunicar com relativa naturalidade, compreender estruturas básicas e manter conversas simples. Porém, essa habilidade não equivale à fluência profunda, aquela em que o sujeito domina nuances linguísticas, expressões idiomáticas, registros variados de linguagem e vocabulário técnico.
Esse ceticismo não diminui o valor dos esforços desses indivíduos, mas sim reposiciona as expectativas do que é "falar uma língua" em sentido pleno. É plausível que alguém com habilidades linguísticas excepcionais e muito tempo dedicado ao estudo consiga dominar cinco ou seis idiomas com fluência efetiva. Acima disso, o domínio tende a se tornar mais superficial — o que não é necessariamente negativo, mas deve ser compreendido com clareza metodológica.
Assim, ao nos depararmos com vídeos ou entrevistas de poliglotas que afirmam falar 15, 18 ou até mais idiomas, devemos adotar uma postura analítica. Que tipo de fluência é essa? Por quanto tempo o idioma foi mantido? Com que frequência é utilizado? Qual o nível de exposição recente? A partir dessas perguntas, podemos distinguir entre fluência profunda, proficiência intermediária e familiaridade básica com uma língua.
Portanto, o poliglotismo extremo, embora possível em certo grau, esbarra em limites biológicos, cognitivos e temporais que não podem ser ignorados. A idealização de falantes milagrosos de dezenas de línguas pode, inclusive, gerar frustrações desnecessárias em aprendizes comuns, que se veem aquém de padrões irreais.
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