Nas últimas décadas, a poesia brasileira passou por transformações significativas em seu conteúdo temático, estilo e vocabulário. Uma das marcas mais evidentes da produção contemporânea é a valorização da linguagem afetiva, marcada por uma expressão direta das emoções, experiências cotidianas e vivências íntimas. Este artigo investiga o uso do léxico afetivo na poesia contemporânea brasileira como um traço distintivo que aproxima o fazer poético da oralidade, das redes sociais e da subjetividade urbana.
O que se observa em muitos poetas contemporâneos é uma linguagem despida de artifícios, que recusa o hermetismo e busca o contato direto com o leitor. Essa escolha linguística é, ao mesmo tempo, uma resposta estética e política: diante de uma sociedade marcada pelo ruído constante, a palavra poética se oferece como afeto, como escuta, como acolhimento. Nesse contexto, o léxico afetivo não é apenas recurso estilístico, mas também uma forma de resistência à aridez do discurso técnico, à violência simbólica das estruturas institucionais e ao cinismo da linguagem midiática.
Poetas como Bruna Beber, Ana Martins Marques, Angélica Freitas e Ryane Leão compõem versos que recuperam o cotidiano, o corpo, a fragilidade e a ternura como temas legítimos do discurso poético. Em seus textos, há uma presença constante de verbos relacionados ao sentir, substantivos do campo emocional e adjetivos que intensificam estados de alma. Esse vocabulário constrói uma poética da vulnerabilidade, que rompe com os valores da impessoalidade e da objetividade herdados de certas tradições modernistas.
Ryane Leão, por exemplo, com seus versos curtos, diretos e publicados frequentemente em redes sociais, opera uma ressignificação do espaço poético: sua poesia, embora breve, é carregada de emoção. Expressões como “senti sua falta”, “chorei o dia todo”, “quero ser abraço” transformam o poema em espaço de escuta e identificação, criando uma comunidade sensível em torno da linguagem.
Já Ana Martins Marques trabalha a afetividade com mais sutileza e ironia. Em seus poemas, os sentimentos emergem nos pequenos gestos, nos objetos do cotidiano, nas pausas e hesitações. Há uma estética do detalhe, em que o afeto não grita, mas sussurra — e, por isso mesmo, ressoa com força no leitor.
Esse léxico afetivo está profundamente ligado à busca por uma linguagem mais inclusiva, mais democrática e mais próxima da fala comum. Ele permite que a poesia dialogue com outros campos discursivos, como as cartas, as mensagens de texto, os diários e até os tweets. Em tempos de hiperconectividade e solidão, o poema se torna um lugar de afeto, uma escrita que toca.
É possível pensar que esse fenômeno é parte de uma tradição iniciada ainda no Romantismo, quando o eu lírico ganhou centralidade e a expressão das emoções passou a ser valorizada. No entanto, a poesia contemporânea resignifica essa herança, filtrando-a por meio de um olhar crítico, urbano, feminista e plural.
O léxico afetivo, portanto, é mais do que uma escolha vocabular: é uma forma de dizer o mundo com o corpo, com o coração e com os sentidos. Ele torna visível aquilo que muitas vezes é relegado ao privado, e ao fazê-lo, politiza o sensível.
Referências bibliográficas:
BEZERRA, Alexandra. A linguagem do afeto na poesia contemporânea. Revista Caligrama, v. 18, n. 2, 2013.
FREITAS, Angélica. Um útero é do tamanho de um punho. São Paulo: Cosac Naify, 2012.
LEÃO, Ryane. Tudo nela brilha e queima. São Paulo: Planeta, 2017.
MARQUES, Ana Martins. O livro das semelhanças. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
ZANINI, Maria Clara. A poética da ternura na literatura brasileira contemporânea. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2020.