O SERTÃO VIROU PRAIA
Por: Leonardo S.
22 de Outubro de 2021

O SERTÃO VIROU PRAIA

A ATUALIZAÇÃO DOS SENTIDOS EM “SÚPLICA CEARENSE”

Letras Análise do Discurso Graduação Letras Linguística e Semiótica

 

  1. Introdução

 A Linguística Textual, a partir dos anos 50 e 60 do século passado, começou a se desenvolver por caminhos um tanto quanto transformadores. Por um lado, vimos o desabrochar do Estruturalismo, a Ciência da Linguagem desenvolver-se com o foco na estrutura da Língua, e por outro, o início de um novo tratamento para os enunciados, partindo da abordagem da estrutura da língua, isto é, da frase para chegar ao processo de enunciação e tudo que o envolve: “A lingüística começará de agora em diante a interessar-se realmente por problemas que não dizem mais respeito somente à frase, indo além dela ao referir-se à enunciação” (COURTINE, 2006, p. 59-60). O que resultou na chamada Análise do Discurso (AD), que hoje, apesar da tenra idade, apresenta diversos segmentos.

Por meio da AD, podemos observar como o estudo dos sentidos foi sendo alterado ao longo da história da Linguística: da estrutura das frases, palavras, sílabas e fonemas aos modos da enunciação, à historicidade do discurso e sua atemporalidade e indefinição de fundação, aos sujeitos que fazem circular os discursos. Todas estas possibilidades surgiram com a AD e permitem hoje realizar uma leitura social acerca dos discursos (re)produzidos e de seus sentidos, sobretudo o conjunto das obras de Foucault, nos permite exercer tal labor intelectual. Visto isso, voltemos o nosso olhar para a sua teoria nas linhas abaixo.

Em sua vasta bibliografia, Foucault discorreu sobre o discurso e sobre enunciação, porém em uma, o autor francês frisou e apresentou a sua pesquisa e teoria acerca de como o saber é que dá o poder, esta chamada Arqueologia do Saber (2008). Para o filósofo, as relações de poder se dão porque são genuinamente relações de saber, isto é, os saberes em circulação são selecionados e organizados por quem tem o poder, e todo poder acontece porque tem em si o poder sobre os saberes. Revel (2005) em sua obra Foucault - Conceitos Essenciais, discorrendo sobre o conceito de Saber, nos explica:

A disciplinarização do mundo por meio da produção de saberes locais corresponde à disciplinarização do próprio poder: na verdade, o poder disciplinar, “para exercer-se nesses mecanismos sutis, é obrigado a formar, organizar e pôr em circulação um saber” (p. 77-78).

Em sua aula inaugural no Collège de France, publicado como A Ordem do Discurso (1996), o autor aborda como na sociedade a produção dos discursos é selecionada, controlada, organizada e redistribuída (2009, p. 8-9) devido ao poder acerca disso. Esse estudo sobre a relação entre o saber e poder fez o autor escrever e publicar a sua obra já citada Arqueologia do Saber (2008), em que podemos notar sua teoria acerca da Formação das Modalidades Enunciativas ao analisar a fala médica em suas diversas expressões. Estas tem o intuito de responder as questões que Foucault levanta sobre que encadeamento e que determinismo há na fala dos médicos e que é preciso encontrar a Lei presente nas enunciações (p. 56).

 

  1. Análise da atualização dos sentidos em “súplica cearense”

O nosso objeto de estudo é o videoclipe da música “Súplica Cearense” gravada pela banda O Rappa (2012) cujo videoclipe se encontra disponível na plataforma YouTube, pelo seguinte link: <https://www.youtube.com/watch?v=F19PnbWigSA>. Entretanto, a principal versão conhecida é a gravada pelo renomado Luiz Gonzaga, nordestino do interior de Pernambuco conhecido como Rei do Baião, em parceria com o cearense Raimundo Fagner (1984) cuja letra se encontra abaixo:

Parte 1

“Oh! Deus, perdoe este pobre coitado

Que de joelhos rezou um bocado

Pedindo pra chuva cair sem parar

Oh! Deus, será que o senhor se zangou

E só por isso o sol arretirou

Fazendo cair toda a chuva que há

Senhor, eu pedi para o sol se esconder um tiquinho

Pedi pra chover, mas chover de mansinho

Pra ver se nascia uma planta no chão

Parte 2

Oh! Deus, se eu não rezei direito o Senhor me perdoe

Eu acho que a culpa foi

Desse pobre que nem sabe fazer oração

Meu Deus, perdoe eu encher os meus olhos de água

E ter-lhe pedido cheinho de mágoa

Pro sol inclemente se arretirar

Desculpe eu pedir a toda hora pra chegar o inverno

Desculpe eu pedir para acabar com o inferno

Que sempre queimou o meu Ceará”

 

Esta canção traz em si um discurso próprio ao ser cantada pelo pernambucano e recantada e gravada por outros artistas nordestinos tais como Elba Ramalho e Fagner.  A sua letra traz o lamento do nordestino que lamenta o seu pedido de chuva que resultou numa tempestade. No lamento pela terra que sofre sem água, a música representa o canto do nordestino camponês, que tem uma íntima relação com a terra e o clima, pois extrai dela a sua sobrevivência, e vive nela a sua história. Logo, notamos aqui que o nordestino entoa uma oração em forma de música que expressa a sua intimidade com o seu meio, o seu relacionamento com o mundo.

No videoclipe d’O Rappa, notaremos que este sentido compreendido e interpretado é apagado e atualizado, não veremos mais o cantar nordestino, mas uma outra expressão, a qual abordaremos mais adiante, por ora, voltemos o nosso olhar para a letra da canção:

“(O meu Ceará gozará nova sorte)

Oh! Deus perdoe esse pobre coitado

Que de joelhos rezou um bocado

Pedindo pra chuva cair, cair sem parar

 

Oh! Deus, será que o senhor se zangou

E é só por isso que o sol se arretirou

Fazendo cair toda chuva que há

 

Oh! Senhor, pedi pro sol se esconder um pouquinho

Pedi pra chover, mas chover de mansinho

Pra ver se nascia uma planta, uma planta no chão

 

 

Oh! Senhor, Pedi pro sol se esconder um pouquinho

Pedi pra chover, Mas chover de mansinho

Pra ver se nascia uma planta no chão, Planta no chão

 

Ganância demais, Chuva não tem mais

Roubo demais, Política demais

Tristeza demais, O interesse tem demais!

 

Oh! Meu Deus, se eu não rezei direito

A culpa é do sujeito

Desse pobre que nem sabe fazer a oração

 

Meu Deus perdoe encher meus olhos d'água

E ter-lhe pedido cheio de mágoa

Pro sol inclemente se arretirar, retirar

 

Desculpe, pedir a toda hora

Pra chegar o inverno e agora

O inferno queima o meu humilde Ceará

 

 

Ganância demais, Fome demais

Falta demais, Promessa demais

Seca demais, Chuva não tem mais!

 

(Meu Ceará gozará nova sorte)

Ó Deus...

Só se tiver Deus...

Ó Deus...”

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

O suporte audiovisual não tem como aqui ser executado, todavia trazemos algumas imagens para melhor visualização do objeto de estudo, em ordem cronológica, e orientamos que se acesse o link indicado para uma melhor experiência.

Início do clipe.

 

 

 

 

Trabalhadores/Súplicas/A tempestade como resposta/O general chefe da expedição da República.

 

 

Canudense em luta/Antônio Conselheiro morto.

 

 

Nesta gravação, vê-se um sentido ampliado, a seca não é somente climatológica. Neste suporte, o espectador é apresentado ao líder de Canudos, Antônio Conselheiro, que está em construção de um povoado com o próprio povo até o Exército da República chegar com tanques e grande aparelhagem bélica contrapondo-se inteiramente às armas dos soldados de Conselheiro. A batalha se inicia e se finda com a morte dos canudenses. A partir disso, notamos que o sentido da música não é mais um lamento devido à súplica cearense não atendida devido a sua relação com a terra, com a vegetação. Ao prosseguir do clipe, vê-se que a angústia vem dessa não correspondência da República com os desejos destes brasileiros.

    O meio e o mundo com o qual o sujeito tem um elo no videoclipe é o desejo dos seguidores de Antônio Conselheiro com a criação de um povoado para eles. Do mesmo modo como na figura do general da expedição da República não é apenas ele um comandante, mas por estar diante de um púlpito e reproduzindo gestos com as mãos semelhantes aos gestos de políticos em discursos, torna-se possível interpretar que ele remonta justamente à figura do político contra a população.

Sendo assim, a banda não canta apenas o lamento deste povo, mas enuncia um canto e um discurso renovado que não era e é emitido pelas interpretações de artistas nordestinos, é um canto próprio de movimentos sociais, assim, tendo as modalidades enunciativas definidas como parâmetro para analisarmos o videoclipe do Rappa, veremos que:

  1. Quem fala?

Procuremos aqui assimilar a esta mesma pergunta à orientação dada por Foucault (2008, p. 57) em sua obra como resposta, investigando qual o status da fala na gravação audiovisual da música. No videoclipe, podemos notar o discurso de protesto sendo retomado. Aqui não é apenas o camponês em lamento, é o discurso de protesto sendo reformulado.

Visto como nas imagens selecionadas, os canudenses são apresentados como construtores de seu povoado (Imagens 2 e 3) e a Expedição Militar da República vem contra isso (Imagens 5 e 6), permitindo a compreensão do não favorecimento desta população e sua autonomia perante o Estado que lhe retira tal função. Podemos concluir, devido à semelhança, o status de protesto contra o Estado.

  1. De que lugar fala?

O lugar de fala é a classe baixa, os movimentos populares que se inspiram na história da Revolta para criticar a opressão política como demonstrada nas imagens, pelas quais notamos a rusticidade das armas dos vaqueiros seguidores de Conselheiro (Imagem 7) contra o poderio bélico da Expedição Militar (Imagens 5 e 6).

  1. Qual posição o sujeito ocupa?

O sujeito, através da expressão e crítica, questiona o que lhe é posto, pois apresenta Conselheiro como construtor de seu povoado e chefe deste povo (Imagem 2) que é assassinado pela Expedição (Imagem 8).

 

 

  1. Considerações Finais

É importante relatarmos que o apagamento para a produção de um novo sentido, logo de um novo discurso, não é dado na alteração de algumas partes da letra, nem ao menos na inclusão de novas frases. Se analisássemos as duas canções somente pela estrutura, ou pelo viés Estruturalista da Linguagem não chegaríamos jamais a tal interpretação. O que vem, de fato, nos auxiliar na demonstração da atualização dos sentidos é notarmos a produção audiovisual a partir das modalidades enunciativas de Foucault, percebermos que o lugar de fala, mesmo sendo um discurso enunciado com quase as mesmas estruturas lexicais é outro.

 

[...] é isso que o torna diferente de uma simples sequência linguística, formulações “às quais o enunciado se refere (implicitamente ou não) seja para repeti-las, seja para modificá-las ou adaptá-las, seja para se opor a elas, seja para falar de cada uma delas; não há enunciado que, de uma ou de outra, não re-atualize outros enunciados” (FOUCAULT, 2000, p.111). Portanto, o enunciado entra em uma rede interdiscursiva vertical de formulações, uma concepção que se aproxima do interdiscurso concebido por Pêcheaux (COURTINE, 2006, p. 70).

 

Nesta citação de Courtine, vemos que todo discurso remete a outros discursos, apagando-os ou atualizando-os, pois todos estão implicados em uma rede discursiva, por esta rede discursiva é-nos possível notar o discurso enunciado no suporte analisado e possível também notarmos como cada ponto do suporte também executa esta ação de interdiscursividade por si só.

 

  1. Referências Bibliográficas

COURTINE, J. J. Metamorfoses do discurso político: derivas da fala pública. Trad. Nilton Milanez e Carlos Piovezani. São Carlos: Claraluz, 2006, p. 59-86.

FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do Saber. Trad. Luiz Felipe Baeta Neves. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008, p. 56-61. Disponível em: <http://www.uesb.br/eventos/pensarcomveyne/arquivos/FOUCAULT.pdf>. Acesso em 11/12/2018.

__________________. A Ordem do Discurso. Aula Inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. 19.ed. São Paulo: Edições. Loyola, 2009. Disponível em: https://moodle.ufsc.br/pluginfile.php/1867820/mod_resource/content/1/FOUCAULT%2C+Michel+-+A+ordem+do+discurso.pdf. Acesso em: 11/12/2018.

REVEL, Judith. Michel Foucault: Conceitos essenciais. Trad. Maria do Rosário Gregolin, Nilton Milanez, Carlo Piovesani. São Carlos: Claraluz, 2005. 96 p.

O RAPPA. Súplica Cearense. 7 vezes. Rio de Janeiro, Warner Music Brasil, 2012.  Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=F19PnbWigSA. Acesso em 08/12/2018.

Gonzaga, L.; Fagner, R. Súplica Cearense. Luiz Gonzaga & Fagner. RCA Victor, 1984. Disponível em: https://www.letras.mus.br/luiz-gonzaga/81584/. Acesso em 08/12/2018.

 

 

 

Cadastre-se ou faça o login para comentar nessa publicação.

Confira artigos similares

Confira mais artigos sobre educação

+ ver todos os artigos

Encontre um professor particular

Busque, encontre e converse gratuitamente com professores particulares de todo o Brasil