Acordo de não persecução penal
Por: Camila F.
05 de Janeiro de 2022

Acordo de não persecução penal

Contextos históricos, trajetória, análise do instituto e jurisprudência

Direito Direito Penal Processo Penal OAB segunda fase OAB primeira fase oab penal

1. Modelos transacionais da justiça penal

1.1. O histórico brasileiro

               Não é de hoje que o Direito Penal permite a transação - ou seja, o acordo - para solver conflitos penais. Há, em verdade, alguns institutos em vigor que antecedem o ANPP e que são, igualmente, modelos de justiça transacional:

  • Transação penal - Cabível para crimes de menor potencial ofensivo, nos termos do artigo 61 da Lei n. 9.099/95, assim considerados os crimes e as contravenções penais a que a lei comine pena máxima não superior a 2 (dois) anos, cumulada ou não com multa.
    • Ação penal privada ou ação penal pública condicionada a representação (ainda sem representação) - É uma flexibilização ao princípio de obrigatoriedade da ação penal. Permite a composição civil dos danos, que, se celebrada, acarreta a renúncia ao direito de queixa ou de representação (Lei n. 9.099/95, art. 75).
    • Ação penal pública incondicionada ou ação penal pública condicionada a representação (já com a representação) - Igualmente é uma flexibilização ao princípio da obrigatoriedade da ação penal. Nesse caso, o Ministério Público, enquanto titular da ação penal, poderá propor a aplicação imediata de penas restritivas de direito ou multas (Lei n. 9.099/95, art. 76).
  • Suspensão condicional do processo (“sursis” processual) - Cabível para os crimes em que a pena mínima cominada for igual ou inferior a 1 (um) ano. Trata-se de uma flexibilização do princípio da indisponibilidade/indesistibilidade da ação penal. A proposta também abrange obrigações, de caráter de pena restritiva de direitos, cujo cumprimento integral acarreta a extinção da punibilidade (Lei n. 9.099/95, art. 89).
  • Acordo de colaboração premiada - Meio de obtenção de prova sustentada na cooperação do investigado, por meio de confissão e de delação dos demais envolvidos. Já havia previsão desse instituto, ainda que de maneira muito tímida, na Lei dos Crimes Contra o Sistema Financeiro Nacional (Lei n. 7.492/96, art. 25, § 2°, com redução da pena de 1/3 a 2/3), na Lei dos Crimes Contra a Ordem Tributária (Lei n° 8.137/90, art. 16, parágrafo único, com redução de pena de 1/3 a 2/3), na Lei de Lavagem de Capitais (Lei n. 9.613/98, art. 1°, § 5°, com redução de pena de 1/3 a 2/3 e cumprimento de pena em regime aberto ou semiaberto; ou deixar de aplicar a pena; ou substituir por pena restritiva de direitos), na Lei de Proteção a Vítimas e Testemunhas (Lei n. 9.807/99, arts. 13 a 15, com perdão judicial e consequente extinção da punibilidade; ou, redução da pena, de 1/3 a 2/3, se a colaboração ocorrer ao longo do processo) e na Lei de Drogas (Lei n. 11.343/06, art. 41, com redução da pena de 1/3 a 2/3). No entanto, esse instituto ganhou maiores proporções a partir de sua estruturação na Lei dos Crimes Organizados (Lei n. 12.850/2013, arts. 3°-A a 7°, inclusive sofrendo alterações pela Lei n. 13.964/19, a chamada “Pacote Anticrime”). Com a estruturação passou-se a tratar, em detalhes, do Termo de Confidencialidade, dos requisitos de celebração do acordo, da instrução probatória decorrente do acordo etc., revelando o caráter negocial da medida.

 

1.2. Direito comparado: o “plea bargain” dos EUA

               O “plea bargain”[1] é, em síntese, a possibilidade de um processado confessar sua culpa, celebrar um acordo e evitar o julgamento. Esse sistema foi inicialmente instituído para desafogar as demandas criminais dos tribunais e teve cada vez mais destaque a medida que crescia a “ultracriminalização” naquele país.

               Estima-se que em 1925 cerca de 90% das acusações criminais eram resultado de confissões e, desde então, o “plea bargain” se tornou um meio indispensável para reduzir os processos criminais nos tribunais. Em 2011, mais de 96% dos casos penais eram encerrados com o instituto e sequer eram submetidos a julgamento.

               Esse instituto foca em processos em andamento. Se celebrado o “plea bargain”, há a expedição de um decreto condenatório e a aplicação de uma pena - diferentemente do ANPP, cujo foco é o cumprimento de condições que não resultam em condenação criminal.

               Existem, por outro lado, severas críticas a esse sistema[2], seja pela redução das garantias aos direitos fundamentais do acusado - com a supressão do devido processo legal, do direito de não se autoincriminar, dentre outros vieses -, seja pela exclusão da vítima no processo de confecção do acordo penal, notadamente em um contexto em que muito se fala sobre a Justiça Restaurativa[3]. Outra crítica bastante contundente é a realização de falsas confissões, por receio do julgamento[4].

               Se pode concluir que, diante de um instituto tão antigo e já consolidado na common law, a recente experiência brasileira com os institutos de justiça penal transacional pode utilizar o modelo estadunidense como fonte de estudo, seja para se inspirar em seus acertos, seja para identificar e sanar seus erros e dificuldades.

 

1.3. Para que serve o acordo?

                Existem acordos nas mais diversas esferas do direito (contratos, relações trabalhistas, relações consumeristas, junto das agências reguladoras etc.). O acordo, em síntese, é uma solução de autocomposição entre as partes inseridas em um litígio, com o escopo de encerrar esse litígio.

                No âmbito cível, em geral, os acordos são traduzidos essencialmente em valores monetários. Assim, as partes buscam alcançar um meio-termo entre o menor valor que uma parte quer pagar e o maior valor que a outra parte pretende receber. Se celebrado o acordo, encerra-se o litígio, inclusive evitando seus riscos e suas onerosidades.

                No âmbito criminal, no entanto, os fatores do acordo não levam em consideração apenas valores pecuniários, pois: (i) as condições impostas não são exclusivamente pecuniárias, podendo-se estipular serviços à comunidade, limitações de ordem diversa etc.; (ii) caso não celebrado o acordo, os efeitos penais gerais e específicos podem ser excessivamente danosos para a parte ré, como, por exemplo, o abalo na reputação, a pena privativa de liberdade, a suspensão de direitos políticos etc. Assim, o acordo se revela uma alternativa vantajosa tanto para a parte, que evita os efeitos nefastos da condenação criminal, como para o Estado, com desafogamento da Justiça e reunião de esforços e recursos financeiros e pessoais no combate à criminalidade organizada, ao tráfico de drogas, aos crimes hediondos etc.

 

2. A criação do ANPP no Brasil: trajetóriaResoluções n. 181 e 183 do Conselho Nacional do Ministério Público

               O Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), órgão que atua na fiscalização administrativa, financeira e disciplinar do Ministério Público (MP) e de seus membros[5], tem por função: zelar pela autonomia funcional e administrativa dos membros do MP, examinar procedimentos disciplinares em face dos membros, aplicar sanções administrativas, elaborar relatórios e propor providências atinentes à atuação dos membros do MP.

                Nesse contexto, o CNMP, em 17/08/2017, editou a Resolução n. 181[6], a qual “Dispõe sobre instauração e tramitação do procedimento investigatório criminal a cargo do Ministério Público”. Ou seja, buscou traçar regras de procedimentos para os casos investigativos a cargo do MP. Dentre os procedimentos sugeridos, instituiu-se no art. 18 da referida resolução o “Acordo de Não-Persecução Penal”, com estrutura muitíssimo parecida com o instituto que hoje conhecemos no art. 28-A do Código de Processo Penal.

                O art. 18 da Resolução n. 181/2017 foi editado por meio da Resolução n. 183[7], de 24/01/2018, também do CNMP, trazendo aprimoramento e detalhamento ao instituto.

                Embora o instituto apresentado pelo CNMP fosse apenas de cunho sugestivo aos membros do MP, houve intensa discussão acerca da constitucionalidade ou inconstitucionalidade de criação do ANPP pelo CNMP:

 

  • Argumentos que defendiam sua constitucionalidade[8]: 
    • O Supremo Tribunal Federal (STF) já reconheceu o caráter normativo de resoluções do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), desde que no âmbito de esfera de competência do órgão (STF, MS 27.621), razão pela qual, por analogia, poderia também o CNMP criar essa normativa. Um dos exemplos de aceitação de normativa por parte do CNJ é a regulamentação da audiência de custódia (Resolução CNJ n. 213/2015).
    • A Resolução n. 181/17, do CNMP, visa a dar efetividade a princípios constitucionais como eficiência (CR/88, art. 37, caput), celeridade processual (CR/88, art. 5°, LXXVIII) e até mesmo da proporcionalidade como mitigação do princípio da legalidade. Destarte, o sistema penal seria efetivamente a ultima ratio, limitando sua intervenção.
    • A criação do instituto de ANPP não seria propriamente uma norma de direito processual penal, tendo em vista que o ato seria anterior ao efetivo processo, em que não há, ainda, o início da jurisdição penal. Não seria, portanto, violação à competência legislativa privativa da União, nos termos do 22, inciso I, da CR/88.
    • O ANPP, na forma como delineada pelo CNMP, trazia condições e requisitos, de modo que não se trataria de liberdade exacerbada, mas sim uma discricionariedade pautada na objetividade e na moralidade do órgão. Ainda, havia previsão de submissão do acordo ao controle judicial.

 

  • Argumentos que defendiam sua inconstitucionalidade[9]:
    • A CR/88 não concedeu ao CNMP competência para edição de ato normativo com o teor da instituição do ANPP, tendo em vista que o 130-A, § 2°, da Carta Magna atribui ao CNMP apenas o controle da atuação administrativa e financeira do CNMP, bem como a expedição de atos regulamentares no âmbito de sua competência, ou mesmo recomendações de providências. As inovações do ANPP, portanto, extrapolariam o poder normativo do órgão.
    • As Resoluções n. 181/17 e 183/18 do CNMP feririam o 22, inciso I, da CR/88, que assentam a competência privativa da União para legislar sobre processo penal. Assim, o ANPP seria um instituto eminentemente processual, não podendo haver a usurpação de competência estipulada constitucionalmente. Inclusive porque as resoluções criaram obrigações ao juiz - a quem competiria analisar o acordo -, não podendo um órgão administrativo do MP criar obrigações aos membros do Poder Judiciário.
    • O ANPP formulado pelo CNMP feriria o princípio da legalidade ( 5°, II, CR/88), tendo em vista que, por não existir um dispositivo legal de previsão do ANPP, não haveria obrigatoriedade aos cidadãos vinculados ao acordo. Ademais, haveria violação do devido processo legal (art. 5°, LIV, CR/88), pois o ANPP previa a possibilidade de renúncia de bens e direitos sem que houvesse, para tanto, o processo judicial.

               A celeuma culminou no ajuizamento de duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade perante o STF (ADI 5.790 e 5.793), ajuizadas pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e pela Associação dos Magistrados Brasileiros.

                 

2.1. Projeto de Lei n. 10.372/2018 (transformado na Lei n. 13.964/19) - “Pacote anticrime”

                A despeito das discussões quanto à (in)constitucionalidade da criação e regulamentação do ANPP pelo CNMP, o instituto foi integrado ao Projeto de Lei n. 10.372/2018, o qual foi ulteriormente transformado na Lei Ordinária n. 13.964/19, o denominado “Pacote anticrime”.

                O “Projeto anticrime” trouxe relevantes alterações ao Direito Penal, Direito Processual Penal e Execução Penal, das quais podem ser citadas: introdução do juiz de garantia, controle de arquivamento de inquérito pelo MP, contaminação do juiz pelo acesso a provas ilícitas, regulamentação da cadeia de custódia da prova, alteração nas medidas cautelares, motivação nas decisões judiciais penais, tempo máximo de cumprimento da pena, livramento condicional, progressão do regime etc. Dentre as alterações está, também, a regulamentação, no Código de Processo Penal, do ANPP, no art. 28-A.

                Ao analisar detidamente o inteiro teor do Projeto de Lei[10] apresentado à Câmara dos Deputados, verifica-se que, para elaboração da proposta legislativa foi criada uma Comissão de Juristas, presidida pelo Exmo. Sr. Ministro do STF Alexandre de Moraes, com o escopo de criar uma proposta de “combate à criminalidade organizada, em especial relacionada ao combate ao tráfico de drogas e armas”.

                A justificação para inclusão do ANPP no referido Projeto de Lei foi assim delineada:

“O combate ao crime organizado exige racionalidade instrumental e priorização de recursos financeiros e humanos direcionados diretamente para a persecução da macro criminalidade.

As organizações criminosas ligadas aos tráficos de drogas e armas têm ligações interestaduais e transnacionais e são responsáveis direta ou indiretamente pela grande maioria dos crimes graves, praticados com violência e grave ameaça à pessoa, como o homicídio, latrocínio, roubos qualificados, entre outros; com ostensivo aumento da violência urbana.

Esse quadro tornou imprescindível uma clara e expressa opção de combate a macro criminalidade, pois seu crescimento é atentatório à vida de dezenas de milhares de brasileiros e ao próprio desenvolvimento socioeconômico do Brasil.

A presente proposta pretende racionalizar de maneira diversa, porém proporcional, de um lado o combate ao crime organizado e a criminalidade violenta que mantém forte ligação com as penitenciárias e, de outro lado, a criminalidade individual, praticada sem violência ou grave ameaça; inclusive no tocante ao sistema penitenciário.

Hoje, há uma divisão em 3 partes muito próximas nos aproximadamente 720 mil presos no Brasil: 1/3 crimes praticados com violência ou grave ameaça, 1/3 crimes sem violência ou grave ameaça e 1/3 relacionados ao tráfico de drogas.

Em que pese quase 40% serem presos provisórios, há necessidade de reservar as sanções privativas de liberdade para a criminalidade grave, violenta e organizada; aplicando-se, quando possível, as sanções restritivas de direitos e de serviços a comunidade para as infrações penais não violentas.

Para tanto, indica-se a adoção de “acordos de não persecução penal”, criando nas hipóteses de crimes cometidos sem violência ou grave ameaça a figura do acordo de não persecução penal, por iniciativa do órgão do Ministério Público e com participação da defesa, submetida a proposta à homologação judicial.

Será possível, inclusive, aproveitar a estrutura criada para a realização de milhares de audiências de custódia para que, em 24 horas, a defesa e acusação façam um acordo que, devidamente homologado pelo Judiciário, permitirá o cumprimento imediato de medidas restritivas ou prestações de serviço a comunidade.

A Justiça consensual para os delitos leves será prestada em 24 horas, permitindo o deslocamento de centenas de magistrados, membros do Ministério Público e defensores públicos para os casos envolvendo a criminalidade organizada e as infrações praticadas com violência e grave ameaça a pessoa.

Trata-se de inovação que objetiva alcançar a punição célere e eficaz em grande número de práticas delituosas, oferecendo alternativas ao encarceramento e buscando desafogar a Justiça Criminal, de modo a permitir a concentração de forças no efetivo combate ao crime organizado e às infrações penais mais graves.

São previstas condições que assegurem efetiva reparação do dano causado e a imposição de sanção penal adequada e suficiente, oferecendo alternativas ao encarceramento. Excluem-se da proposta os crimes de competência dos Juizados Especiais Criminais, os crimes hediondos ou equiparados, os crimes militares e aqueles que envolvam violência doméstica ou cometidos por funcionário público contra a administração pública. Com vistas a evitar a impunidade, o mesmo anteprojeto institui nova causa impeditiva do curso da prescrição, enquanto não for integralmente cumprido o acordo de não persecução.

A racionalização da Justiça Criminal com a adoção do acordo de não persecução penal para os delitos não violentos possibilitará a readequação de magistrados para o combate à criminalidade organizada, com a necessidade de medidas protetivas aos agentes estatais responsáveis por seu processo e julgamento. Propõe-se a instalação de Varas Colegiadas, pelos Tribunais de Justiça e pelos Tribunais Regionais, de caráter permanente com competência para o processo e julgamento dos crimes praticados por organizações criminosas e conexos, de maneira a alcançar maior eficiência nos julgamentos, ao mesmo tempo em que se busca proteger o Poder Judiciário e os magistrados.” (p. 31-33).

                Nota-se, portanto, a preocupação da utilização da justiça consensual penal como forma de desafogar as demandas do judiciário e permitir a reunião de esforços para combate da criminalidade organizada. Além disso, permite-se, de maneira mais célere, a efetiva reparação do dano e a imposição da sanção, ao passo que também fornece alternativa ao encarceramento exacerbado.

                Esses são argumentos inevitavelmente afetos ao estudo da análise econômica do direito penal, em que, sem desapegar dos princípios constitucionais de devido processo legal, culpabilidade e legalidade (garantismo), por exemplo, busca-se calcular o custo-benefício das sanções penais, da morosidade judiciária e das penas efetivamente aplicadas ao cabo do processo penal.

                Com a aprovação da Lei n. 13.694/19, o ANPP passou a ser regulamentado no art. 28-A do Código de Processo Penal, sanando, portanto, as principais discussões que circundavam o ANPP nos termos em que criado pelo CNMP.

 

3. O ANPP, ponto a ponto: Art. 28-A do CPP

 

Art. 28-A. Não sendo caso de arquivamento e tendo o investigado confessado formal e circunstancialmente a prática de infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos, o Ministério Público poderá propor acordo de não persecução penal, desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime, mediante as seguintes condições ajustadas cumulativa e alternativamente:  

I - Reparar o dano ou restituir a coisa à vítima, exceto na impossibilidade de fazê-lo;    

II - Renunciar voluntariamente a bens e direitos indicados pelo Ministério Público como instrumentos, produto ou proveito do crime;

III - Prestar serviço à comunidade ou a entidades públicas por período correspondente à pena mínima cominada ao delito diminuída de um a dois terços, em local a ser indicado pelo juízo da execução, na forma do art. 46 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal);

IV - Pagar prestação pecuniária, a ser estipulada nos termos do art. 45 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), a entidade pública ou de interesse social, a ser indicada pelo juízo da execução, que tenha, preferencialmente, como função proteger bens jurídicos iguais ou semelhantes aos aparentemente lesados pelo delito; ou

V - Cumprir, por prazo determinado, outra condição indicada pelo Ministério Público, desde que proporcional e compatível com a infração penal imputada.

               

                O art. 28-A, caput e incisos, do CPP, traz os seguintes requisitos ao ANPP:

  • Não ser caso de arquivamento - Deve haver justa causa para ação penal. Se não houver justa causa, trata-se de procedimento a ser arquivado.
  • Ter o investigado confessado formal e circunstancialmente - Em relação a esse tópico há diversas críticas, inclusive que defendem a inconstitucionalidade da disposição, sob o argumento de ferir o direito constitucional de não autoincriminação, nos termos do 5°, LXIII, da CR/88[11]. Ademais, igual exigência não ocorre na transação penal e na suspensão condicional do processo, ambos institutos da Lei n. 9.099/95. Há dúvidas, ainda, quanto à possibilidade, ou não, de utilização da confissão em processo futuro, no caso de descumprimento do ANPP por parte do investigado. Por fim, a confissão deve ser formal e abranger os fatos delineados - já comprovados pela justa causa penal -, sempre acompanhado do defensor.
  • Infração penal sem violência ou grave ameaça - Como decorre da própria justificação do Projeto de Lei n. 10.372/2018, os crimes praticados com violência e grave ameaça, em sua maioria, são praticados por agentes ligados às organizações criminosas e ao tráfico de drogas. Ainda segundo o PL, o que se pretende é endurecer o combate a esses delitos.
  • Pena mínima inferior a 4 (quatro) anos - Se observado o 44, inciso I, do Código Penal, tem-se que “as penas restritivas de direitos são autônomas e substituem as privativas de liberdade, quando: I - aplicada pena privativa de liberdade não superior a quatro anos e o crime não for cometido com violência ou grave ameaça à pessoa (...).”. Ou seja, na prática, em muitas condenações de crimes não violentos há fixação de pena privativa de liberdade inferior a 4 (quatro) anos que, no caso concreto, pode ser substituída, em regra, por pena restritiva de direitos. O ANPP permite, portanto, que desde logo sejam aplicadas medidas restritivas de direitos antes mesmo da deflagração penal, evitando-se todo o dispêndio processual e desafogando a justiça criminal, em casos que, geralmente, culminariam exatamente na mesma medida de sanção.
  • O Ministério Público “poderá” - Há discussão sobre o poder-dever do MP e, de outro lado, o direito subjetivo do investigado. Assim como ocorre na transação penal e no sursis processual, embora haja a expressão “poderá”, o STJ e o STF pacificamente entendem que, se preenchidos os requisitos objetivos e subjetivos, o MP deve oferecer a benesse. Caso assim não o faça, o próprio instituto prevê meios em favor do investigado, que poderá pedir a revisão do parecer.
  • Desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime - Traduz, ao mesmo tempo, os princípios da razoabilidade e proporcionalidade - ou seja, as medidas estipuladas no acordo devem guardar proporcionalidade e razoabilidade com o delito praticado. E, de outro lado, também traduz duas funções da pena, quais sejam, a reprovação e a prevenção.
  • Condições ajustadas cumulativa e alternativamente - O termo “ajustadas” denota o caráter negocial do ANPP, em que será possível o ajuste, entre o MP e o investigado, quanto às condições que comporão o acordo. Nota-se que se pode elencar apenas uma das condições apresentadas, ou, ainda, escolher diversas das condições. Essa escolha - entre apenas uma condição ou diversas delas cumulativamente - ocorrerá de acordo com os critérios de razoabilidade e proporcionalidade, como extraído do próprio caput.
  • I - Reparar o dano ou restituir a coisa à vítima, exceto na impossibilidade de fazê-lo - Além de demonstrar a preocupação com a vítima, aproximando-se da Justiça Restaurativa, o inciso também indica, em caráter excepcional, a dispensa da medida para os casos de investigado hipossuficiente financeiramente.
  • II - Renunciar voluntariamente a bens e direitos indicados pelo Ministério Público como instrumentos, produto ou proveito do crime - A perda de instrumentos, produto ou proveito do crime é considerada um efeito da condenação, conforme 91, inciso II, alíneas “a” e “b”, do Código Penal. O que há, portanto, é a possibilidade de “adiantamento” desses efeitos, mas sem, efetivamente, a condenação - e seus demais efeitos genéricos e específicos.
  • III - Prestar serviço à comunidade ou a entidades públicas por período correspondente à pena mínima cominada ao delito diminuída de um a dois terços - A prestação de serviços à comunidade é uma espécie de pena restritiva de direitos ( 43, IV; 46, Código Penal). Em caso de condenação, a prestação de serviços à comunidade se dá pelo tempo da pena privativa de liberdade. No caso do ANPP, esse tempo é reduzido, de 1/3 a 2/3.
  • IV - Pagar prestação pecuniária - Também é uma pena restritiva de direitos ( 43, I, Código Penal). Segundo a disposição do ANPP, busca-se alocar os valores oriundos da prestação pecuniária para entidade pública ou de interesse social que tenha, preferencialmente, como função proteger bens jurídicos iguais ou semelhantes aos aparentemente lesados pelo delito. É uma forma de proteger, de maneira coletiva, o bem jurídico violado pela prática do crime.
  • V- Cumprir, por prazo determinado, outra condição indicada pelo Ministério Público, desde que proporcional e compatível com a infração penal imputada - É uma cláusula em aberto, que será aferida no caso concreto, para melhor compatibilizar a condição estipulada e o delito praticado. O balizamento é apenas genérico, pois se exige proporcionalidade e compatibilidade entre a condição e a infração penal imputada.

 

          • § 1º Para aferição da pena mínima cominada ao delito a que se refere o caputdeste artigo, serão consideradas as causas de aumento e diminuição aplicáveis ao caso concreto.

 

               Como se trata de aferição da pena mínima, é preciso seguir o seguinte raciocínio:

  • Se há causa de diminuição da pena, verifica-se a fração que mais reduz a pena. Se, por exemplo, a pena mínima do crime é de 2 anos e é aplicável a causa de diminuição da pena pela tentativa ( 14, inciso II e parágrafo único, Código Penal). Em caso de tentativa, a pena pode ser reduzida de 1/3 a 2/3. A fração que mais reduz a pena é a de 2/3 (isso porque, se a pena é de 2 anos e reduz 1/3 dela, chega-se a 1 ano e 4 meses; e se a pena é de 2 anos e reduz 2/3 dela, chega-se a 8 meses). A pena mínima, portanto, é aquela que resulta da fração que mais a diminui, nos casos de causa de diminuição.
  • Se há causa de aumento de pena, verifica-se a fração que menos aumenta a pena. Se, por exemplo, a pena mínima do crime é de 2 anos e é aplicável a causa de aumento pelo crime continuado ( 71, Código Penal), a pena poderá ser majorada de 1/6 a 2/3. A fração que menos aumenta a pena é a fração de 1/6 (isso porque, se a pena é de 2 anos e aumenta 1/6 dela, chega-se a 2 anos e 4 meses; e se a pena é de 2 anos e aumenta-se 2/3 dela, chega-se a 3 anos e 4 meses). A pena mínima, portanto, é aquela que resulta da fração que menos a aumenta, nos casos de causa de aumento.

 

          • § 2º O disposto no caputdeste artigo não se aplica nas seguintes hipóteses

I - Se for cabível transação penal de competência dos Juizados Especiais Criminais, nos termos da lei;

II - Se o investigado for reincidente ou se houver elementos probatórios que indiquem conduta criminal habitual, reiterada ou profissional, exceto se insignificantes as infrações penais pretéritas;

III - Ter sido o agente beneficiado nos 5 (cinco) anos anteriores ao cometimento da infração, em acordo de não persecução penal, transação penal ou suspensão condicional do processo; e

IV - Nos crimes praticados no âmbito de violência doméstica ou familiar, ou praticados contra a mulher por razões da condição de sexo feminino, em favor do agressor.

 

                O § 2° traz situações em que não é cabível a celebração de ANPP:

  • I - Se for cabível transação penal - Isso porque o 76 da Lei n° 9.099/95, que regulamenta a transação penal, é aplicável para os crimes de menor potencial ofensivo, cuja pena máxima é igual ou inferior a 2 anos. É um instituto, portanto, que abrange crimes menos graves que aqueles abrangidos pelo ANPP, de modo que é preferível quando cabível.
  • II - Investigado reincidente ou conduta criminal habitual, reiterada ou profissional - O conceito de reincidência é extraído dos artigos 63 e 64 do Código Penal e diz respeito à situação do agente que comete novo crime depois de transitar em julgado a sentença que o tenha condenado por crime anterior, durante o período depuratório de 5 anos, contados a partir do cumprimento ou extinção da pena. Também não será cabível o ANPP se a conduta criminal do agente é habitual, reiterada ou profissional, ou seja, o agente corriqueiramente pratica, por diversas vezes, aquela conduta, ou até mesmo faz dela seu modo de vida. A exceção, todavia, ocorre se as infrações penais pretéritas são insignificantes, vale dizer, são atípicas em razão da aplicação do princípio da bagatela.
  • III - Benefício, nos 5 (cinco) anos anteriores ao cometimento da infração, de ANPP, transação penal ou sursis processual - Se o agente já foi beneficiado por uma das formas de justiça consensual penal, sem condenação penal, não poderá ser novamente beneficiado pelo instituto, pois demonstra, em consonância com o inciso anterior, que o agente reitera aquela conduta criminosa. Anote-se que o prazo é verificado em relação à data do cometimento da infração - e não da celebração do acordo, ou do encerramento da investigação criminal.
  • IV - Nos crimes praticados no âmbito de violência doméstica ou familiar, ou praticados contra a mulher por razões da condição de sexo feminino, em favor do agressor - Na mesma linha do 41 da Lei n. 11.340/06 (Lei “Maria da Penha”), que impede a aplicação da Lei n. 9.099/95 para os crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena.

 

          • § 3º O acordo de não persecução penal será formalizado por escrito e será firmado pelo membro do Ministério Público, pelo investigado e por seu defensor.

 

                O acordo tem forma vinculada por lei e é essencialmente escrito. Ademais, é fundamental a presença do membro do MP (enquanto titular da ação penal pública, nos termos do art. 129, I, CR/88), do investigado e do seu defensor, seja advogado (art. 133, CR/88), seja um defensor público (art. 134, CR/88) - esse último caso o investigado seja financeiramente hipossuficiente. Nota-se a preocupação com o acompanhamento da defesa técnica durante a formulação do ANPP, como forma de garantia ao investigado.

 

          • § 4º Para a homologação do acordo de não persecução penal, será realizada audiência na qual o juiz deverá verificar a sua voluntariedade, por meio da oitiva do investigado na presença do seu defensor, e sua legalidade.

 

                A audiência é realizada somente entre juiz, investigado e advogado. Isso porque o escopo da audiência é verificar a voluntariedade - ou seja, se o investigado livremente aceitou o acordo e suas cláusulas, sem quaisquer pressão ou coação - e a legalidade - se o acordo foi traçado à luz dos princípios constitucionais, das disposições legais e, em especial, das regras do art. 28-A do CPP. Novamente demonstra-se a preocupação de que o investigado esteja acompanhado de sua defesa técnica. Se o juiz reputar que estão presentes a voluntariedade e a legalidade, então homologará o acordo.

 

          • § 5º Se o juiz considerar inadequadas, insuficientes ou abusivas as condições dispostas no acordo de não persecução penal, devolverá os autos ao Ministério Público para que seja reformulada a proposta de acordo, com concordância do investigado e seu defensor.

 

                O juiz pode não homologar o ANPP se considerar que as cláusulas são:

  • Inadequadas - Não há adequação entre fato criminoso e as cláusulas aplicadas. Cite-se, exemplificativamente, a obrigação de reparação de dano ( 28-A, caput, inciso I, do CPP) em um crime em que não há como reparar o dano.
  • Insuficientes - O juiz reputa que as cláusulas estipuladas são irrisórias se comparadas com a gravidade concreta do delito e o grau de ofensa ao bem jurídico.
  • Abusivas - O juiz considera que há muitas cláusulas, ou as condições são demasiadamente severas, que podem inclusive pôr em risco o efetivo cumprimento do acordo futuramente.

                Ainda que o juiz repute que as cláusulas são inadequadas, insuficientes ou abusivas, não pode, de ofício, realizar a alteração. Tendo em vista que a titularidade da ação penal é do MP, então terá de devolver os autos ao Parquet, ao qual caberá reavaliar as cláusulas, de acordo com os apontamentos judiciais. Novamente se destaca a participação do investigado e de seu defensor, pois a lei exige que eles concordem com a remessa dos autos ao MP. É possível apontar, como crítica, a probabilidade de que o investigado consinta com o envio dos autos ao MP no caso de considerar as cláusulas abusivas; contudo, poderá ser mais resistente quando o juiz reputar as cláusulas insuficientes.

               

          • § 6º Homologado judicialmente o acordo de não persecução penal, o juiz devolverá os autos ao Ministério Público para que inicie sua execução perante o juízo de execução penal.

 

                Após a homologação judicial, o MP deverá dar início à execução do acordo diretamente perante o juízo de execução penal. Tendo em vista que as condições muito se aproximam das penas restritivas de direitos, o juízo de execução penal ficará a cargo de acompanhar o recolhimento das prestações pecuniárias, direcionar e fiscalizar o cumprimento da prestação de serviços à comunidade, dentre as outras condições estipuladas.

 

          • § 7º O juiz poderá recusar homologação à proposta que não atender aos requisitos legais ou quando não for realizada a adequação a que se refere o § 5º deste artigo.

 

                Foram elencadas situações em que o juiz poderá recusar a homologação do ANPP:

  • Se a proposta não atender aos requisitos legais - Ou seja, se o ANPP ferir quaisquer dos requisitos insculpidos no 28-A do CPP, como, por exemplo, a pena mínima estipulada, a presença de defensor na celebração do ANPP etc.
  • Se não for realizada a adequação do § 5° - Se o juiz considerar as cláusulas inadequadas, insuficientes ou abusivas, encaminhará os autos ao MP para alteração das referidas cláusulas. Se, no entanto, o MP nada alterar e reenviar o ANPP para o juiz, poderá ele recusar a homologação, tendo em vista que não foram feitas as alterações de acordo com seus apontamentos, nos termos do § 5°.

               

          • § 8º Recusada a homologação, o juiz devolverá os autos ao Ministério Público para a análise da necessidade de complementação das investigações ou o oferecimento da denúncia.

 

                Se o juiz recusar a homologação, então devolverá os autos ao MP, ao qual caberá:

  • Analisar a necessidade de complementação das investigações - Esse trecho é, s.m.j., bastante contraditório com a própria essência do ANPP, tendo em vista que no caput do art. 28-A do CPP evidencia-se o cabimento de ANPP quando não for o caso de arquivamento. E somente não será caso de arquivamento quando houver justa causa para a propositura da ação penal. No entanto, esse dispositivo deve ser lido em conjunto com o 18, § 7°, da Resolução n. 181/2017 do CNMP (com redação dada pela Resolução n. 183/2018 do CNMP), segundo o qual era possível a celebração de ANPP em sede de audiência de custódia. No entanto, tal disposição não integrou o art. 28-A do CPP.
  • Oferecimento da denúncia - Esse trecho é mais condizente com o instituto do ANPP. Ou seja, se recusada a homologação do acordo, estar-se-á diante de um procedimento investigatório já robustecido pela justa causa penal, sendo possível, de pronto, o oferecimento da denúncia e a deflagração da ação penal em desfavor do acusado.

 

          • § 9º A vítima será intimada da homologação do acordo de não persecução penal e de seu descumprimento.

 

                Novamente se prestigia a participação da vítima do ANPP, ainda que bastante tímida, determinando sua intimação e cientificação no caso de homologação do acordo, bem como na hipótese de descumprimento por parte do acusado.

 

          • § 10. Descumpridas quaisquer das condições estipuladas no acordo de não persecução penal, o Ministério Público deverá comunicar ao juízo, para fins de sua rescisão e posterior oferecimento de denúncia.
          • § 11. O descumprimento do acordo de não persecução penal pelo investigado também poderá ser utilizado pelo Ministério Público como justificativa para o eventual não oferecimento de suspensão condicional do processo.

 

                Os dispositivos tratam do descumprimento do acordo:

  • Rescisão - Se o investigado descumprir quaisquer das condições impostas, tal fato será comunicado pelo MP ao juízo, com o escopo de rescindi-lo. Ou seja, finda-se o acordo, em razão do descumprimento por parte do investigado, devendo o MP, em seguida, oferecer a denúncia.
  • Não cabimento de sursis processual - Se a pena mínima do crime imputado ao acusado for menor ou igual a um ano, em tese caberia a suspensão condicional do processo, à luz do 89 da Lei n. 9.099/95. No entanto, o sursis processual também se trata de imposição de condições ao acusado, razão pela qual o descumprimento do ANPP é fundamento suficiente para afastar a possibilidade de sursis processual.

 

          • § 12. A celebração e o cumprimento do acordo de não persecução penal não constarão de certidão de antecedentes criminais, exceto para os fins previstos no inciso III do § 2º deste artigo.

 

                Tendo em vista que o ANPP é um instituto despenalizador, o qual afasta os efeitos da condenação penal, não constará contra o investigado qualquer apontamento em suas folhas de antecedentes criminais. A única anotação será para indicar que ele foi beneficiário do ANPP, a fim de que, de acordo com o § 2°, inciso II, ele não seja novamente beneficiado caso pratique nova infração penal no período de 5 anos.

 

          • § 13. Cumprido integralmente o acordo de não persecução penal, o juízo competente decretará a extinção de punibilidade.

 

                Trata-se de uma hipótese de extinção de punibilidade fora do rol do art. 107 do Código Penal. Assim, cumpridas as condições, extingue-se a punibilidade do agente, sem quaisquer efeitos penais gerais ou específicos.

 

          • § 14. No caso de recusa, por parte do Ministério Público, em propor o acordo de não persecução penal, o investigado poderá requerer a remessa dos autos a órgão superior, na forma do art. 28 deste Código.

               

                O art. 28 do Código de Processo Penal trata do procedimento cabível nos casos em que o juiz discorda da promoção de arquivamento do inquérito policial por parte do MP. Esse dispositivo também foi alterado pela Lei n. 13.964/19; no entanto, o Min. Fux, do STF, determinou a suspensão desse e de outros pontos - como, por exemplo, a criação do juiz de garantias, a ilegalidade de prisões caso não ocorra a audiência de custódia em 24h - em razão da necessidade de organização estrutural dos órgãos para lidar com as novas rotinas impostas.

                No entanto, para fins do § 14, o procedimento indicado é aquele trazido, efetivamente, pelo art. 28 do CPP, em sua redação atual, que determina o encaminhamento dos autos para o órgão de revisão do MP, para fins de homologação.

               

3.1. Outros dispositivos que tratam do ANPP, incluídos pela Lei n. 13.964/19

 

Art. 581. Caberá recurso, no sentido estrito, da decisão, despacho ou sentença:

(...)

XXV - Que recusar homologação à proposta de acordo de não persecução penal, previsto no art. 28-A desta lei.

 

                O art. 581, inciso XXV, do CPP, que disciplina o RESE, estipula o cabimento do referido recurso no caso de recusa de homologação de ANPP por parte do juiz. Como visto, o juiz pode recusar a homologação do ANPP por dois fundamentos: de acordo com o art. 28-A, § 7°, do CPP, poderá recusar o ANPP caso a proposta não atenda aos requisitos legais ou não forem realizadas as adequações apontadas pelo magistrado, segundo o § 5° do mesmo artigo. Ao recusar a proposta, o juiz devolve os autos ao MP, para que, de acordo com o art. 28-A, § 8°, do CPP, o membro do MP dê continuidade às investigações ou ofereça a denúncia.

                No entanto, pode o membro do MP discordar do juiz, seja porque reputa presentes os requisitos legais, seja porque considera adequadas as condições impostas no ANPP. Nesse caso, o membro do MP poderá interpor RESE perante o Tribunal respectivo, insistindo no pleito de homologação do acordo.

 

Art. 116 - Antes de passar em julgado a sentença final, a prescrição não corre:

(...)

IV - Enquanto não cumprido ou não rescindido o acordo de não persecução penal.

 

                O art. 116, inciso IV, do Código Penal introduz uma causa suspensiva da prescrição, consistente na pendência do cumprimento do ANPP. Como cediço, a prescrição da pretensão punitiva estatal é uma sanção pela inatividade do Estado em sua prerrogativa de persecução. No entanto, são há como considerar o Estado inerte quando se aguarda o efetivo cumprimento do ANPP. Desse modo, enquanto perdurar o cumprimento do acordo, deverá ficar suspensa a prescrição, somente voltando a correr caso o agente descumpra o ANPP - isso porque deverá ser retomada a atividade persecutória, com o oferecimento da denúncia ou com a continuidade das investigações. Se, por outro lado, o agente cumpre integralmente o ANPP, então haverá extinção de sua punibilidade, não subsistindo qualquer discussão acerca da prescrição.

 

4. Jurisprudência atualizada

4.1. Retroatividade do ANPP

               

Considerando que o ANPP é um instituto muito recente, ainda há poucas decisões judiciais dos tribunais superiores quanto à sua aplicação - embora haja intensos debates doutrinários sobre o assunto. Abaixo estão colacionadas algumas decisões importantes do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e do Supremo Tribunal Federal (STF) quanto ao ANPP:

 

EMENTA: Direito penal e processual penal. Agravo regimental em habeas corpus. Acordo de não persecução penal (art. 28-A do CPP). Retroatividade até o recebimento da denúncia. 1. A Lei nº 13.964/2019, no ponto em que institui o acordo de não persecução penal (ANPP), é considerada lei penal de natureza híbrida, admitindo conformação entre a retroatividade penal benéfica e o tempus regit actum. 2. O ANPP se esgota na etapa pré-processual, sobretudo porque a consequência da sua recusa, sua não homologação ou seu descumprimento é inaugurar a fase de oferecimento e de recebimento da denúncia. 3. O recebimento da denúncia encerra a etapa pré-processual, devendo ser considerados válidos os atos praticados em conformidade com a lei então vigente. Dessa forma, a retroatividade penal benéfica incide para permitir que o ANPP seja viabilizado a fatos anteriores à Lei nº 13.964/2019, desde que não recebida a denúncia. 4. Na hipótese concreta, ao tempo da entrada em vigor da Lei nº 13.964/2019, havia sentença penal condenatória e sua confirmação em sede recursal, o que inviabiliza restaurar fase da persecução penal já encerrada para admitir-se o ANPP. 5. Agravo regimental a que se nega provimento com a fixação da seguinte tese: “o acordo de não persecução penal (ANPP) aplica-se a fatos ocorridos antes da Lei nº 13.964/2019, desde que não recebida a denúncia”.

Decisão

A Turma, por unanimidade, negou provimento ao agravo regimental, nos termos do voto do Relator, e fixou a seguinte tese: o acordo de não persecução penal (ANPP) aplica-se a fatos ocorridos antes da Lei nº 13.964/2019, desde que não recebida a denúncia. Primeira Turma, Sessão Virtual de 30.10.2020 a 10.11.2020.

Tese

O acordo de não persecução penal (ANPP) aplica-se a fatos ocorridos antes da Lei nº 13.964/2019, desde que não recebida a denúncia.

(STF, HC 191.464 AgR, Primeira Turma, Min. Roberto Barroso, Julgamento 11/11/2020).

 

                De acordo com a ementa, a norma que instituiu o ANPP foi considerada uma norma híbrida, ou seja, de cunho de direito material e de direito processual, simultaneamente. É cediço que a norma de cunho material é regida pelo art. 2°, parágrafo único, do Código Penal, segundo o qual a lei posterior mais favorável deve retroagir para os fatos anteriores. De outro lado, a norma de cunho processual é aplicada desde logo, preservando-se a validade dos atos anteriores, independentemente se a nova norma é ou não mais favorável ao réu, segundo o art. 2° do Código de Processo Penal. Em sendo uma norma híbrida, prevalece o caráter material da norma, de modo que é possível admitir sua retroatividade, caso a referida norma seja mais benéfica.

                No entanto, o julgado acima limitou temporalmente a incidência dessa retroatividade, tendo em vista que considerou somente aplicável o ANPP nos casos em que não houvesse denúncia oferecida. Isso se dá em razão da própria natureza do ANPP, que visa a evitar a persecução processual penal, de modo que sua celebração necessariamente antecede o oferecimento da denúncia e a consequente deflagração da ação penal.

                No mesmo sentido é o posicionamento do STJ:

HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO PRÓPRIO. VIA INADEQUADA. NÃO CONHECIMENTO. TRÁFICO DE DROGAS. APLICAÇÃO DO ART. 28-A DO CPP. ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL (ANPP). DENÚNCIA JÁ RECEBIDA. IMPOSSIBILIDADE. PRECEDENTES DESTA 5ª TURMA E DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. HABEAS CORPUS NÃO CONHECIDO. (...)

          1. A Lei n. 13.964/2019 (comumente denominada como "Pacote Anticrime"), ao criar o art. 28-A do Código de Processo Penal, estabeleceu a previsão no ordenamento jurídico pátrio do instituto do acordo de não persecução penal (ANPP).
          2. O acordo de não persecução penal (ANPP) aplica-se a fatos ocorridos antes da Lei nº 13.964/2019, desde que não recebida a denúncia. (HC-191.464/STF, 1ª TURMA, Rel. Ministro GILMAR MENDES, DJe de 12/11/2020). No mesmo sentido: (EDcl no AgRg  no  AgRg  no AREsp  1635787/SP,  Relator Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, Quinta Turma, DJe 13/8/2020 e Petição no AREsp 1.668.089/SP, da Relator  Ministro FELIX FISCHER, DJe de 29/6/2020).
          3. No caso dos autos, a discussão acerca da aplicação do acordo de não persecução penal (art. 28-A do CPP) só ocorreu em sede de apelação criminal e no momento do recebimento da denúncia não estava em vigência a Lei nº 13.964/2019, o que impede a incidência do instituto.
            5. Habeas corpus não conhecido.

(STJ, HC 607.003/STF, Min. Rel. Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, Julgamento 24/11/2020).

 

                O entendimento foi reforçado no Informativo n. 683 do STJ, com a seguinte tese: “O acordo de não persecução penal (ANPP) aplica-se a fatos ocorridos antes da Lei nº 13.964/2019, desde que não recebida a denúncia.”

                Vale mencionar, todavia, que a 2ª Câmara de Coordenação e Revisão (Criminal) do Ministério Público Federal editou o enunciado n. 98, segundo o qual é admitida a celebração de ANPP durante a ação penal, com denúncia oferecida, para os casos que já estavam em curso antes da introdução do “Pacote anticrime”:

 

Enunciado n. 98 

É cabível o oferecimento de acordo de não persecução penal no curso da ação penal, isto é, antes do trânsito em julgado, desde que preenchidos os requisitos legais, devendo o integrante do MPF oficiante assegurar seja oferecida ao acusado a oportunidade de confessar formal e circunstancialmente a prática da infração penal, nos termos do art. 28-A do CPP, quando se tratar de processos que estavam em curso quando da introdução da Lei nº 13.964/2019, conforme precedentes, podendo o membro oficiante analisar se eventual sentença ou acórdão proferido nos autos configura medida mais adequada e proporcional ao deslinde dos fatos do que a celebração do ANPP. Não é cabível o acordo para processos com sentença ou acórdão após a vigência da Lei nº 13.964/2019, uma vez oferecido o ANPP e recusado pela defesa, quando haverá preclusão.

Alterado na 187ª Sessão Virtual de Coordenação, de 31/08/2020.

 

                Destarte, a despeito do posicionamento do STF e do STJ, no âmbito de atribuição do MPF, perante a Justiça Federal, é possível arguir o referido enunciado da 2ª CCR, que traz entendimento mais benéfico ao réu do que aquele apresentado pela Corte.

               

4.2. Necessidade de fundamentação para não oferecimento de ANPP

PROCESSO PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS. AUSÊNCIA DE IMPUGNAÇÃO DOS FUNDAMENTOS DA DECISÃO AGRAVADA. (...). ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL
(ART. 28-A DO CPP). PENA MÍNIMA SUPERIOR A 4 ANOS DE RECLUSÃO. AGRAVO REGIMENTAL NÃO CONHECIDO. (...)

          1. Com efeito, o membro do Ministério Público, ao se deparar com os autos de um inquérito policial, a par de verificar a existência de indícios de autoria e materialidade, deverá ainda analisar o preenchimento dos requisitos autorizadores da celebração do ANPP, os quais estão expressamente previstos no Código de Processo Penal: 1) confissão formal e circunstancial; 2) infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos; e 3) que a medida seja necessária e suficiente para reprovação e prevenção do crime. Noutras palavras, caberá ao órgão ministerial justificar expressamente o não oferecimento do ANPP, o que poderá ser, após provocação do investigado, passível de controle pela instância superior do Ministério Público, nos termos do art. 28-A, § 14, do CPP.
          2. Ademais, eventual tese defensiva de se aplicar o artigo 33, parágrafo 4º, da Lei 11.340/06 revela-se mero juízo de prognose. A recorrente foi flagrada e responde por tráfico internacional de entorpecentes, cuja pena mínima é de 05 (cinco) anos.

(STJ, AgRg no RCH 128.660/SP, Min. Rel. Reynaldo Soares da Fonseca, 5ª Turma, J. 18/08/20).

 

                À luz da ementa colacionada conclui-se que o instituto do ANPP se trata de poder-dever do MP, ao passo que se traduz em direito subjetivo do investigado. Assim, a recusa do MP em relação ao oferecimento do ANPP deve ser fundamentada, indicando-se os requisitos subjetivos e/ou objetivos que não são preenchidos pelo investigado.

 

5. Conclusão

O Acordo de Não Persecução Penal, ainda muito recente no direito penal brasileiro, pode ser um mecanismo muito proveitoso para sanear as intensas demandas da Justiça e focar os esforços na criminalidade violenta e organizada. Não se pensa, por outro lado, que o ANPP deixa de se preocupar com a criminalidade “menor”, também, tendo em vista que o instituto se revela muito efetivo para a imediata aplicação de sanções restritivas de direitos e busca atingir os ideais de retribuição e de prevenção da pena.

Continuemos a acompanhar o desenvolvimento do instituto e das decisões judiciais.

Bons estudos!

Camila F.

 

_______________________________

Referências

 

[1] RODAS, Sérgio. Nos EUA, plea Bargain foi instituído para desafogar tribunais. Consultor Jurídico. 19 de fevereiro de 2019. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2019-fev-19/eua-plea-bargain-foi-instituido-desafogar-tribunais>. Acesso em: 17 de mar. 2021.

[2] Os perigos da plea Bargain no Brasil. Jusbrasil. 2017. Disponível em: <https://canalcienciascriminais.jusbrasil.com.br/artigos/400578643/os-perigos-da-plea-bargain-no-brasil>. Acesso em: 17 de mar. 2021.

[3] OLIVEIRA, Jayme Martins de Oliveira. Justiça Restaurativa do Brasil. Associação dos Magistrados Brasileiros. Disponível em: <https://www.amb.com.br/justica-restaurativa/>. Acesso em 19 de mar. 2021.

[4] BETTA, Emerson de Paula. Da inconstitucionalidade e irrelevância do requisito da confissão do ANPP. Consultor Jurídico. 17 de março de 2020. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2020-mar-17/tribuna-defensoria-inconstitucionalidade-irrelevancia-confissao-anpp>. Acesso em 18 de mar. 2021.

[5] Apresentação. Conselho Nacional do Ministério Público. Disponível em: <https://www.cnmp.mp.br/portal/institucional/o-cnmp/apresentacao>. Acesso em 17 de mar. 2021.

[6] Íntegra da Resolução n. 181/2017 do CNMP. Disponível em: <https://www.cnmp.mp.br/portal/images/Resolucoes/Resoluo-181-1.pdf>. Acesso: 17 de mar. 2021.

[7] Íntegra da Resolução n. 183/2018 do CNMP. Disponível em: <https://www.cnmp.mp.br/portal/images/Resolucoes/Resoluo-183.pdf>. Acesso: 17 de mar. 2021.

[8] CABRAL, Rodrigo Leite Ferreira. O acordo de não-persecução criminal criado pela nova Resolução do CNMP. Consultor Jurídico. 18 de setembro de 2017. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2017-set-18/rodrigo-cabral-acordo-nao-persecucao-penal-criado-cnmp>. Acesso 18 de mar. 2021.

[9] ZIESEMER, Henrique da Rosa; JUNIOR, Jádel da Silva. As persistentes inconstitucionalidades da Resolução 181 (e 183) do CNMP. Jus. Fevereiro de 2018. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/64178/as-persistentes-inconstitucionalidades-da-resolucao-181-e-183-do-cnmp>. Acesso 18 de mar. 2021.

[10] Câmara dos Deputados. Inteiro teor do PL 10.372/18. Disponível em: <https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2178170>. Acesso 18 de mar. 2021.

 

Cadastre-se ou faça o login para comentar nessa publicação.

Confira mais artigos sobre educação

+ ver todos os artigos

Encontre um professor particular

Busque, encontre e converse gratuitamente com professores particulares de todo o Brasil